Você está em uma festa em um buffet infantil e observa seu filho na paciente fila do Arvorismo. De repente, a criança que estava por último é arrancada de seu lugar e colocada, pela mãe, como primeira da fila, passando à frente de todos os outros que haviam chegado antes. A indignação das outras crianças da fila é notória. Eles reclamam, protestam. A mãe, com sua arrogância, ignora. Quem poderia decidir ali o que estava certo ou errado era a monitora. Mas esta, sabe-se lá por qual motivo, não se opõe. E aquela criança aprende, em um local lúdico e divertido, que é correto levar vantagem em detrimento do outro. “Minha mãe me ensinou a furar fila. Que legal! ”, é o que vai ficar registrado em sua mente. O perigo disso tudo é: se a criança não aprende em casa, a vida ensina. Daí o erro que muitos pais cometem em querer proteger sua cria.
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Fatos como este são corriqueiros, vemos o tempo todo. Para
quem desconhece a importância da ética na convivência humana, é fácil
compreender a enorme “falta de educação” daquela mãe, que certamente não
aprendeu a ser ética e deve cometer esta e outras irregularidades em
desrespeito ao outro e à sociedade. Nem precisa pensar muito: nos deparamos com
tais exemplos de desrespeito todos os dias. São aquelas pessoas que largam
o carrinho do supermercado no meio do estacionamento ou atrás do carro ao
lado, param nas vagas de gestantes ou de idosos (para não ter que
andar muito, afinal, não tem ninguém olhando...), compram algo e não
honram com o compromisso de pagar. Ou aquele colega de trabalho que é seu
amigo, mas que não perde a oportunidade de te prejudicar na empresa. Afinal,
ele também quer ser promovido, assim como você.
A revista NA MOCHILA conversou com dois dos mais importantes
pensadores brasileiros da atualidade – Clóvis de Barros Filho e Mário
Sérgio Cortella – para entender a responsabilidade dos pais e da escola em
transmitir os valores éticos para as crianças.
A palavra ética tem origem grega, “ethos”, que significa
“caráter”. “Ética é aquela perspectiva para olharmos os nossos princípios
e os nossos valores para existirmos em sociedade. É impossível pensar em
ética sem pensar em convivência”, explica o filósofo e educador
Mário Sérgio Cortella. Ou melhor, é o conjunto de princípios e valores de
conduta que uma pessoa ou um grupo de pessoas tem.
Daí vem a pergunta: a partir de qual idade devemos ensinar uma
criança a respeitar os códigos de conduta ética, para vivermos em harmonia
na sociedade? Segundo o professor de filosofia da Universidade de São
Paulo, Clóvis de Barros Filho, ética é algo que se aprende a partir
do momento que a criança começa a socializar com as outras. “Sem dúvida é
na infância o melhor momento para a criança entender o que a ética
significa. Eu não posso dizer se é na família o lugar ideal, porque muitas
vezes os pais são agentes de deformação moral. Através de seus exemplos,
eles prestam um desserviço ético, porque querem fazer triunfar
suas ambições de qualquer jeito, porque não respeitam o coletivo a que
pertencem, porque estão sempre tentando levar vantagem. E ainda a criança
recebe em casa um péssimo modelo de aprendizado ético”, afirma.
Frase de destaque
“Educar é restringir, é definir privações, é direcionar a energia vital numa certa direção em detrimento de outra. Se deixarmos uma criança solta, ela será guiada pelos seus instintos.
Clóvis de Barros Filho
Ética se aprende na escola?
Para outro importante pensador e educador, Mario Sérgio Cortella,
existe uma diferença entre educação e escolarização. Educação é a formação
de uma pessoa. Escolarização é um pedaço da educação. “A tarefa de
educação dos filhos é da família em primeiro lugar, e do poder público de
forma secundária. A escola faz escolarização. Por isso, se a família não
cumpre aquilo que precisa cumprir, a escola não dará conta. É preciso
fazer uma parceria com as famílias, de modo a também formar os pais.
Porque uma parcela dos pais está perdida, ela não sabe que tem obrigação.
Ela vive uma situação de submissão com os filhos”, explica.
Cortella dá o exemplo daquela família que chega ao restaurante e
pergunta ao filho de 8 anos aonde ele quer sentar, o que ele quer comer, o
que ele quer fazer. Para ele, embora seja uma forma carinhosa de os pais
tratarem a criança, é algo que a deseduca. “É óbvio que eu sou contrário a
bater, a espancar, mas não sou contrário de maneira nenhuma a uma
educação que seja firme. Ser firme não é espancar. É a fala, é a
autoridade, é colocar a mão no ombro com delicadeza, mas com firmeza, para
a criança sentir a pressão, sem machucar.
Pode parecer pouco, mas há uma diferença significativa na formação
de um caráter. Fazer perguntas deixando que a criança escolha não é uma
forma carinhosa de educar. Ela é acovardada. É a ditadura infantil. Resultado:
parte dessas crianças é formada em famílias que não têm autoridade sobre
ela. A criança dorme na hora que quer, come o que deseja, sai a hora que
quer. Não pode ser assim”, ressalta.
E se não há restrições na família, a criança vai encontrar
obstáculos a essa falta de limites na escola. “Mas aí, quando a criança é
contrariada ou precisa seguir regras, ela parte pra cima do professor. Nós
nunca tivemos tantos casos de violência de alunos contra professor
como estamos tendo agora. Porque o educador é o primeiro adulto na vida de
uma criança a exercer a autoridade. E autoridade não é autoritarismo.
Autoridade é a responsabilidade com mando.
Essa autoridade tem que ser exercida. Tem pai que reclama que o
professor deu falta porque o filho faltou, ou porque o filho leva lição de
casa. O problema disso é que nós estamos formando uma geração mais fraca,
que não pega no serviço”, completa Cortella.
Clóvis de Barros também exalta o trabalho do educador com a
necessidade de ser restritivo. “Educar é restringir, é definir privações,
é direcionar a energia vital numa certa direção em detrimento de outra. Se
deixarmos uma criança solta, ela será guiada pelos seus instintos,
por aquilo que Freud chama de ‘princípio de prazer’. Ela buscará maximizar
seu prazer e isso pode tornar complicada a sua existência no mundo social.
Todo trabalho de civilização é um trabalho de definição das condições em
que a satisfação pode acontecer. E a educação dos pais é uma parte
importantíssima desse processo civilizatório, que é um processo
de direcionamento das energias vitais. Quando esse trabalho não é bem
feito, a criança tenderá a sofrer fora de casa as punições que deveria ter
sofrido no ambiente familiar”, diz.
Frase de destaque
“Nós nunca tivemos tantos casos de violência de alunos contra professor como estamos tendo agora. Porque o educador é o primeiro adulto na vida de uma criança a exercer a autoridade. ”
Mário Sérgio Cortella
Os valores se perderam?
Há quem diga que antigamente as pessoas eram mais educadas, que a
sociedade era mais ética e que estes valores de respeito e de integridade
estão se perdendo com o tempo. Mas Clóvis de Barros Filho não concorda com
esta teoria. “A história da humanidade é a história da exploração, da
humilhação, do massacre, da opressão..., portanto, não dá para acreditar que
um dia nós tínhamos valores excelentes e que estes se perderam. Eu tenho a
impressão de que nós nunca tivemos uma convivência adequada. Sou muito
mais confiante no futuro do que no passado”, esclarece.
Para o filósofo e professor, o passado não é um bom exemplo. “Temos a chance de fazer com que amanhã a convivência seja melhor do que hoje. Mas eu também não acredito em transformações radicais, do dia para noite. Acredito que as coisas podem ir melhorando devagar, de degrau a degrau, como verdadeiros grãos de areia. Hoje, por exemplo, em lugares fechados, é muito pouco provável que alguém tire um cigarro para fumar, o que há dez anos era normal. Então eu acho que a convivência melhorou nesse quesito”. E ainda completa: “A ética é a crença de que a convivência de amanhã possa ser melhor do que a de hoje. Portanto, é um esforço coletivo de aperfeiçoamento da convivência”, diz.
Como ensinar ética aos filhos?
Os dois pensadores concordam que é função da família ensinar
princípios e valores que serão a base da personalidade, da conduta do
indivíduo. E se o mundo ou as pessoas não são éticas como deveriam, entra
aí a questão dos valores morais. “O mundo que nós vamos deixar para nossos
filhos depende muito dos filhos que nós vamos deixar para este mundo. E que
filhos nós vamos deixar? ”, indaga Cortella.
Quem pensa que esses valores serão construídos fora de casa, está
enganado. “Uma criança que tem diabetes, por exemplo, deve ser criada
fechada em casa para não correr o risco de comer o que não pode ou deve
ser instruída pelos pais de que, quando fora de casa, coma somente aquilo
que não fará mal para ela? ” Pergunta Cortella. “É claro que não podemos
criar nossos filhos em uma redoma. O mesmo vale em relação à conduta.
Temos que ensinar a eles como viver neste mundo”, completa.
Construir uma personalidade ética não é tarefa fácil para os pais
ou para os educadores, porém, pode e deve ser feita sem arrogância ou
prepotência. Cortella orienta para que os pais prestem mais atenção aos
filhos, principalmente os jovens, que são avessos a qualquer tipo
de autoritarismo. “Quando o filho chega em casa e você pergunta: ‘E aí,
filho, o que você aprendeu hoje na escola? Isso é auditoria. Se você quer
saber isso, de uma forma que ele vai gostar, você deve perguntar: ‘E aí,
filho, o que é que você pode me ensinar hoje? ’ A diferença é que crianças
e jovens adoram ensinar. Os valores que um filho terá são os valores que
nós passarmos para ele”, explica.
Clóvis também destaca a importância da socialização na introdução
da ética na educação das crianças. “Desde os jogos mais infantis, a
criança deve ser instruída a respeitar a convivência. Esses jogos
infantis, com a participação de mais de um, são momentos importantíssimos para que
a criança possa saber até onde vai a pretensão dela e até onde vai a
preservação do próprio jogo, que pressupõe a aceitação de certas regras. E
esse já é um excelente passo para a introdução da ética”, afirma.
Frase de destaque
“A ética é a crença de que a convivência de amanhã possa ser melhor do que a de hoje. Portanto, é um esforço coletivo de aperfeiçoamento da convivência. ”
Clóvis de Barros Filho
Pais x falta de
tempo
Na atual rotina familiar, na qual pai e mãe trabalham fora e
possuem uma cobrança cada vez maior em sua vida profissional, a relação
com a educação da criança acaba ficando comprometida pela própria falta de
tempo – sem falar na falta de energia. “Os pais hoje educam menos por uma
questão de administração das suas forças vitais. Tanto o marido como a
mulher se dedicam demasiadamente aos seus projetos profissionais, ao seu
trabalho, ao ganho do sustento, que acabam delegando a tarefa de educar os
filhos. E de certa maneira não querem assumir o ônus e o custo de impor
sanções aos filhos”, explica Clóvis de Barros.
E é aí que mora o problema. “Muitas vezes, as exigências da vida
profissional fazem com que os pais tenham que abrir mão de gastar energia
para entrar em atrito, para advertir, para dar bronca nos filhos. Tudo
isso custa, é pesado, é cansativo. Então, ‘deixa para lá’. Essa ideia
do ‘deixa para lá’ é particularmente nefasta, porque a criança precisa ser
preparada para interagir em sociedade. E essa preparação tem que ser feita
no seio da família”, esclarece.
Escolhas certas
Uma grande preocupação para os pais é saber se a educação que seus
filhos estão recebendo, tanto dentro de casa como fora dela, dará a eles
uma base sólida para que saibam fazer escolhas corretas. A criança começa
a escolher por volta dos 6 a 7 anos, mas as responsabilidades vão ficando
cada vez maiores na adolescência: o primeiro beijo, a primeira relação, a
faculdade, o primeiro gole, o primeiro cigarro, as companhias... certamente, se
você ainda não parou para pensar nisso, fica o alerta do professor Clóvis:
“As escolhas tendem a ser tanto melhores quanto mais sofisticado for o
repertório daquele que escolhe. Nós nunca poderemos inibir as pessoas de
fazerem certas escolhas”, afirma.
Para ele, cabe aos pais dar as condições para que as escolhas sejam consistentes. E isso tem a ver com trajetória, com o repertório, com experiências de vida. São as experiências de vida que permitirão as escolhas. “Elas não saem do nada. Nesse sentido, todos nós que educamos uma criança somos responsáveis por abrir o leque de suas experiências, e fazendo isso estaremos também melhorando as suas referências para futuras escolhas”, finaliza.
Frase de destaque:
“Personalidade ética é construída quando nós prestamos atenção, quando nós olhamos para o jovem com o olhar dele, e sem arrogância. ”
Mário Sérgio Cortella
“Tudo o que não
puder contar como fez, não faça”.
Famosa definição de ética do filósofo Immanuel Kant
Nossas Fontes:
Clóvis de Barros Filho, jornalista,
advogado, palestrante e escritor. É professor de Ética na Universidade de
São Paulo (USP)
Mário Sérgio Cortella, filósofo,
doutor em Educação, é palestrante e autor de vários livros sobre Educação
e Ética.
Fonte:
Artigo desenvolvido pelo projeto NA
MOCHILA, que em parceria com as escolas oferece uma revista por bimestre aos
pais de alunos do ensino Infantil e Fundamental I.